sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Que Leitura gostosa...

O TESTAMENTO
Todos os familiares diretamente interessados na leitura do testamento estavam presentes naquela sala, convenientemente trajados de preto. As senhoras, representantes da alta sociedade local, exibiam algumas de suas mais reluzentes jóias e tinham nas mãos um lencinho branco de rendas para, como convinha, enxugarem algumas lágrimas devidas ao falecido.
A sala, na verdade, uma grande e sóbria biblioteca e gabinete de trabalho, era o espelho da grande cultura e sapiência de que fora detentor seu proprietário. Denotava bom gosto na decoração e na parede atrás de sua escrivaninha, havia a pintura de um retrato seu, em traje social. Seu semblante, de um homem em torno de sessenta anos, era bonito e tranquilo.
Enquanto aguardavam a chegada do notário, os presentes olhavam para o retrato, para toda a sala e comentavam sobre aquele homem. Os elogios, eram unanimidade. Ele fora um marido e pai exemplar. Todos o amavam muitíssimo. Fizera uma grande fortuna por méritos próprios, mesmo vindo de uma família muito pobre. Fora uma pessoa de rara inteligência. E o desfile de bajulações era interminável, como se a pessoa a quem se dirigiam estivesse ali presente.
Contudo, uns olhavam para os outros com algum rancor e certa apreensão. Seus pensamentos não eram dos mais nobres. “ O que faz aqui esse esbórnia?”. “ Essa falsa, que lhe colocou chifres”. “Quem pode levar a sério esse ignorante?” “Vagabundo, está aqui apenas atrás de dinheiro. Trabalhar que é bom...”. “ Filha ingrata. Só pensa em gastar com cavalos. Nem carinho lhe deu.”
Duas criadas entraram trazendo bandejas com bebidas, sucos, chá e algumas guloseimas refinadas. Deixaram tudo sobre as mesas aparadoras e saíram tão silenciosas como haviam entrado. Os homens se serviram de bebidas e as senhoras se serviram de chá. Apenas a viuva se serviu de whisk com gelo.
Os homens demonstravam impaciência, andando de cá para lá, parando perto das estantes com livros e fingindo ler seus títulos. As mulheres bebericavam o chá e se serviam de salgadinhos, o que também era uma forma de aplacar a ansiedade.
Cada uma dessas pessoas estava ansiosa por saber o quanto lhe caberia desse espólio. E que espólio! Uma das maiores fortunas do país.
Por que o tabelião se fazia esperar tanto? Afinal, ele era apenas um empregado como outro qualquer, que vinha realizar um trabalho burocrático. Eles eram herdeiros de uma grande fortuna e mereciam mais deferência. O atraso já era de quarenta minutos. O que esse idiota estava pensando? Com certeza deveria se retratar e se desculpar pelo atraso. Ai dele se não o fizesse.
Outros trinta minutos e nada do homem. A impaciência já tomava conta de todos e um burburinho, que aos poucos se transformava em alarido, tomava conta da biblioteca. Alguns até já praguejavam e faziam algumas ameaças mais violentas.
A porta se abriu e o notário entrou, acompanhado de uma senhora de aproximadamente sessenta anos, muito bonita, elegantemente vestida e adequadamente maquiada, portanto poucas e discretas jóias. Cumprimentaram cerimoniosamente os presentes e se sentaram à cabeceira da mesa de reuniões, pedindo aos presentes que também o fizessem.
O notário iniciou a reunião apresentando a desconhecida aos presentes, informando que ela era a testamenteira escolhida pelo falecido. Informou que o testamento fora redigido a exatos dois anos, na presença de três testemunhas e devidamente registrado em cartório. Se nenhuma dos presentes fizesse objeção daria início a leitura. Fez-se silêncio.
Quando ele ia dar início à leitura do testamento um dos herdeiros resolveu questionar o motivo do atraso do tabelião. O fez de modo acintoso, ríspido e arrogante, lembrando-o que, como um simples prestador de serviços, ele deveria ter tido um mínimo de respeito e consideração pelos herdeiros.
Tranquilamente o tabelião o informou que o atraso fora proposital e que era uma das clausulas do testamento. Esclarecia ainda que o dr. Hermano lembrava a todos os presentes que eles nunca eram pontuais, nem para as coisas mais importantes para o cumprimento de suas obrigações e que, com aquele atraso desejava demonstrar a maior consideração pelo notário e pela testamenteira. Não os queria aguardando pelos herdeiros. Dispôs assim para que se desse o oposto. Houve um silêncio sepulcral na sala e um princípio de apreensão tomou conta de todos eles.
O tabelião arguiu se havia mais alguma questão que os presentes quisessem esclarecer e, nada havendo, iniciariam a leitura do testamento. Pediu à testamenteira que lesse a introdução do documento. Ela o fez, com voz pausada e calma: “Esclareço a todos quanto tenham acesso a este documento que, nesta data, no gozo de plena saúde física e de posse da total integridade de minhas faculdades mentais, solicitei ao ilustre notário, sr. Benito de Arruda Filho, que convocasse a este Cartório a sra. Magda Helena de Sampaio e Veiga, com o intuito de fazer dela, que tem sido minha muito dileta amiga e confidente durante os últimos trinta anos, a minha testamenteira oficial.
“À minha família, que com certeza estará reunida e muito atenta à leitura deste documento, quero deixar claro o quanto eles foram decepcionantes para mim. Deles não recebi respeito, não recebi amor e nem a mínima compensação por todo o esforço que desenvolvi para dar-lhes uma vida digna, organizada, tranquila e abastada. Desde a mais tenra idade, o que sempre ouvi deles foram as palavras “compre” e “eu quero”.”
Naquele momento podia-se ouvir o silêncio, naquela sala. As respirações pareciam ter sido suspensas e nem o piscar de olho era ouvido. Os presentes estavam hirtos em seus lugares. E a voz pausada e calma da testamenteira continuava: “ Sinto-me culpado por não ter iniciado, logo cedo, um processo de educação mais rígido, aplicando regras sócio-educativas necessárias, mas o amor que lhes dedicava levava-me a pensar que eram coisas de criança. Mais tarde eu os desculpei pensando serem coisas de adolescentes. Comecei a ficar mais preocupado quando constatei que, adultos, não queriam estudar, não queriam trabalhar, não assumiam responsabilidade por seus atos, mas não recusavam festas e badalações, dormiam até tarde após noitadas e viagens e eu não conseguia mais controlá-los. Tornaram-se arrogantes, mal educados, acintosos, tendo por referência apenas o dinheiro e a posição social e, por causa deles, pensarem estar acima de tudo e de todos. Foram tomados pela febre que o poder do dinheiro confere ao ser humano.
Os problemas começaram a se suceder e eles se tornaram absolutamente incontroláveis. Quanto a mim, continuava errando, pois em suas contas bancárias não faltava dinheiro. Se eu não as abastecia, Rosana, minha mulher, o fazia. E minha mulher, a mãe, onde estava? Esta, para não sofrer incômodos, fazia todas as vontades dos filhos e ela, como sempre fora sua aspiração, era uma locomotiva da alta sociedade, preocupada apenas com futilidades, com gastos exagerados em roupas, jóias, academias, spas, viagens etc. Corria atrás de tudo, menos do que era mais importante, seus filhos, seu papel de mãe.
Neste momento, redigindo este testamento, informo aos meus herdeiros que pensei com muito carinho em cada um deles, lembrei-me de todas as suas atitudes ao longo dos anos e deixo-lhes o que é devido e merecido por eles. Como um último ato de amor e de fé, espero contribuir agora para a redenção de cada um deles.”
Havia um mal estar no ar, um nervosismo e uma apreensão por algo que estava para acontecer, sem que eles tivessem o menor controle sobre a situação. O que será que aquele homem fizera?
A testamenteira passou o documento e a palavra ao tabelião, que deu início à leitura sobre a partilha dos bens. “ Começando pela minha mui amada esposa Rosana, peço ao notário que lhe entregue a caixa de veludo vermelho que contém um par de próteses de silicone para serem colocadas nos glúteos. Esta é a última prótese que lhe falta, já que, de resto, fez todas as cirurgias plásticas que podia para mostrar-se mais bela e desejável a seus muitos amantes, que ela imaginava serem desconhecidos para mim. Informo que a cirurgia já está agendada e paga. De resto, ela deve entregar à testamenteira todas as jóias que possui e deixar esta casa, assim que terminada a leitura do testamento. Com certeza, encontrará abrigo na residência de um de seus amantes, principalmente com uma bunda nova, que confirmará seus atrativos e a tornará mais sex.”
A viúva tornou-se muito lívida e desmaiou. Houve um corre- corre, abana- abana e ela acabou retirada da sala por uma das criadas. Tinha perdido a pose. A esta altura dos acontecimentos, os demais herdeiros já esperavam pelo pior, mas mesmo assim, aguardavam com ansiedade e nervosismo a continuação da partilha.
Ao meu filho mais velho Otávio, deixo uma caixa de preservativos da melhor qualidade, com certificado de garantia de que não vão furar ou rasgar. Otávio leva a vida na cama, acompanhado de mulheres de qualquer espécie e não tem responsabilidade nem mesmo com sua própria saúde e vida. Espero não ser tarde demais para que ele as use. Deve precisar de um emprego que possa suprir seus gastos, pelo menos com preservativos, já que a partir desta data não haverá mais depósito em suas contas bancárias.
Otávio, colérico, ergueu-se de um salto e disse: só pode ser brincadeira! Ao que o tabelião respondeu: mas não é. Ninguém mais poderá deixar esta sala, até o final da leitura do documento, enfatizou o notário, prosseguindo:” à minha filha Ana Clara, que não fez outra coisa na vida a não ser montar cavalos, viver só para eles e se esquecer que tinha família, que precisava se preparar profissionalmente, que a vida vai além dos estábulos, deixo seus dois melhores e mais estimados animais. Deixo ainda ração para três meses e uma carroça, novinha, porque agora o único trabalho que saberá exercer é o de carroceira.”
Absurdo, gritou a jovem, histérica! Se meu pai pensou que determinou minha vida em testamento, está muito enganado. Amanhã mesmo pego o dinheiro de minha conta e vou viajar. Quando voltar, pensarei no que fazer.
Sinto informá-la que em sua conta bancária não existe mais numerário. A senhorita mesma se encarregou de gastá-lo nas cavalariças e nada mais foi depositado, por ordem expressa do dr. Hermano, disse o tabelião. Ana Clara agitava-se em sua cadeira, levantava-se, andava e não acreditava em tudo que estava ouvindo ali.
Retomando a leitura, informo que para o filho caçula, Jorge Henrique, deixou a importância de quinhentos mil dólares. Para recebê-la deverá cumprir a exigência a seguir:“Jorge, meu filho, sempre estive a par de sua condição de homossexual e acompanhei de longe seu sofrimento, tentando esconder de todos a sua opção. Mais uma vez faço mea culpa por não ter tido coragem suficiente para abordar o assunto com você, de pai para filho, como devem ser as relações do coração. Peço-lhe que não tenha medo de assumir esse compromisso com você mesmo. Sei de suas relações com Reinaldo. Mandei averiguá-lo e tenho certeza que é um homem de bem. O dinheiro que deixo é para que você possa assumir sua vida com ele e encontrar o caminho para a sua felicidade.”
Jorge Henrique permaneceu calado, olhando para o bico dos sapatos e tinha lágrimas nos olhos. Depois de um momento ergueu a cabeça e olhou de frente para todos, sem desviar o olhar.
Os demais presentes, filhos e noras, esbravejavam, ofendiam a memória do falecido de todas as formas, dizendo inverdades e impropérios. Já estavam esquecidos de que há pouco mais de uma hora atrás, eram todo elogios e bajulações para ele. Mas e a fortuna? Para onde vai?
O tabelião e a testamenteira não se surpreendiam. Eram reações mais do que esperadas, sabendo de antemão quem eram aquelas pessoas e seu caráter. Tomavam uma água fresca e esperavam, para dar continuidade a leitura e encerrar aquela desagradável sessão. Acalmados temporariamente os ânimos, o tabelião pediu licença para concluir seu trabalho.
Com voz pausada informou que toda a fortuna, avaliada em sete bilhões de dólares entre propriedades, fazendas, indústrias e ações, iria para o senhor Jairo de Vasconcelos Mota, com a recomendação de que, caso lhe fosse solicitado pelos herdeiros, deveria prover-lhes de trabalho, em atribuições condizentes com a formação e esforço de cada um. Assim também a remuneração, as horas extras e demais exigências feitas pelo trabalho que exerceriam. Não teriam regalias de qualquer espécie, mas tão somente justiça, o que era devido a qualquer outro empregado. Assim como a qualquer funcionário do Grupo, não lhes seriam negadas promoções e a possibilidade de galgar postos executivos, desde que devidamente preparados para isso. Através dos mecanismos morais e legais, poderiam até mesmo se tornar acionistas das empresas e ocuparem acentos no Conselho.
Todos se ergueram de um salto, como impulsionados por um choque elétrico e gritaram: O filho da cozinheira?

http://www.overmundo.com.br/banco/o-testamento-1

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